quinta-feira, 7 de junho de 2012

A Língua Portuguesa

Perguntas à Língua Portuguesa
(Mia Couto)

Venho brincar aqui no Português, a língua.
Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique.
Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta. |||

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia.
O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo.
Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida.
E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões?
Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. |||

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou. |||

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia.
Nós estamos simplesmente ocupados a sermos.
Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. |||

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão.
Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé?
Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações.
Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver.
Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio. |||

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias.
Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão.
Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas. |||

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas.
Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro? |||

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências.
Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua: |||

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo? |||

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco? |||

A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética? |||

O mato desconhecido é que é o anonimato? |||

O pequeno viaduto é um abreviaduto? |||

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente? |||

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu? |||

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado? |||

Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação? |||

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim? |||

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"? |||

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço? |||

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro? |||

Mulher desdentada pode usar fio dental? |||

A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel? |||

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"? |||

Um tufão pequeno: um tufinho? |||

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha? |||

Em águas doces alguém se pode salpicar? |||

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério? |||

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose? |||

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo? |||

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca? |||

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina.
Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia.
Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. |||

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia.
Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança.
É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

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